MÚSICA É VIDA

WILKER MARQUES

Quando Nietzsche afirmou que “sem a música a vida seria um erro”, estava tomando o cuidado que é próprio aos grandes homens de pensamento: ele não estava dizendo que se não houvesse música a vida seria inconcebível, nem que seria impossível, nem que ela seria inviável; o que ele disse, com precisão, foi que ela seria, simplesmente, um erro. Essa é uma daquelas afirmações que mesmo antes de a gente captar seu significado, somos sequestrados violentamente por seu sentido profundo.

Nietzsche não tinha medo ou aversão ao que é feio ou aos sofrimentos da vida. O conceito de amor fati[1], tão evidente em sua retórica filosófico-poética, é justamente isso: tudo o que compõe a vida precisa ser aceito, respeitado, enfrentado e fruído. E nisso também ele foi um mestre, sua história de vida se confundia com seu pensamento[2]. Ele amou e sofreu com intensidade. Mas quando se referia a força e alegria de existir, em geral, estava falando de Música, de Arte.

Música é vida. Ela é mais que ondas sonoras organizadas, mais que palavras justapostas nas frases de uma melodia, mais que uma sequência criativa de acordes. Ela é um modo de comunicar sem dizer, de dizer sem palavras e de imprimir às palavras uma sonoridade e um alcance totalmente inusitados. A música é capaz de falar até quando para, quando todos os integrantes de uma orquestra sinfônica estão em uma pausa geral. Ou até quando o guitarrista de uma banda de rock decide – sabe-se lá por quê – tocar com os dentes. Ela está nos logaritmos da matemática, na vibração dos tubos sonoros e no movimento das esferas que giram no firmamento. Ela está na ponta da batuta do maestro e na leveza das asas das borboletas. Ela está na atitude de louvar a Deus, nas brincadeiras das crianças, no pedido de casamento e no instante de saudade.

Música não é só aquilo que o músico adota como profissão. Ela é a morada do músico, um lugar no mundo em que ele se sente em casa. É por essa razão que após tocar por três horas ou mais – enquanto as outras pessoas jantam e conversam distraídas – ele volta pra casa assobiando. No caminho, vem chegando de volta a esse mundo real, cheio de obrigações, e uma delas lhe é urgente: praticar mais o seu instrumento.

Ocorre, entretanto, que não precisa ser músico para perceber algo, façamos um experimento: pare um instante, feche seus olhos, ouça o Bolero de Ravel, ou ouça Imagine de John Lennon, ou então Wind of Change da banda alemã Scorpions, ou Trem das Cores de Caetano Veloso. Após isso, pense: essa música poderia não ter existido… para isso bastaria que o seu autor – homem real, de carne, osso, amor e dor, como Nietzsche – tivesse optado por não dedicar um tempo especial de sua vida a fazê-la, costurando as palavras, pincelando as cores dos acordes, montando o quebra cabeça dos tempos precisamente articulados, pesando a massa sonora, traçando o caminho dos solos, medindo a extensão das notas etc.

Está feito. Chegamos ao típico espanto que faz nascer toda a reflexão. Chegamos ao ponto onde esteve o grande pensador alemão. Somos impelidos a perguntar: como seria a vida sem isso?!

1| Expressão latina equivalente a “amor ao destino”. É um conceito filosófico muito recorrente ao pensamento dos filósofos estoicos e, também, à filosofia de Nietzsche. Trata-se de um convite a aceitarmos que tudo de bom e de ruim que a vida nos traz é importante para sermos quem somos.

2| Do ponto de vista formal, a obra intelectual de Nietzsche é, de certo modo, caótica, alternando textos mais dialógicos entre si com aforismos desconexos, como a vida costuma ser.

WILKER MARQUES é professor de Filosofia do IFPI – Cocal, advogado e músico. Ele é capaz de comprar um livro só pela beleza da capa, de parar de falar para ouvir uma música, e acredita que tudo o que pode ser dito pode ser dito com beleza.

Ilustração| Marina Brito