NATHÁLIA MARIA LOPES DIAS
FRANCISNILTO DOS SANTOS NASCIMENTO
MICAELI RODRIGUES DE CARVALHO
NARA CHRISTINNA DA SILVA FONTINELE
RESUMO
O artiga explora as complexidades que permeiam a insubmissão de intelectualidades negras, focalizando na interseccionalidade entre gênero, raça e classe como um fator central. Destaca- se que a combinação tríplice dessas dimensões contribui para a visão equivocada de que pessoas negras não se inserem no universo do conhecimento científico e literário. No contexto da produção acadêmica, o artigo referencia a quarta onda do feminismo, conforme definido por Heloisa Buarque de Hollanda, que busca transcender as fronteiras acadêmicas e se manifestar em diversas formas, incluindo poesia, artes, música e cinema. No entanto, destaca-se a ambiguidade inerente ao “nós” feminista, conforme abordado por Judith Butler, que, ao buscar representar coletividade, pode inadvertidamente excluir algumas vozes historicamente silenciadas. Além disso, o artigo explora o COPENE – Congresso de Pesquisadores (as) Negros (as) – como um espaço crucial de luta e resistência, promovendo a representatividade e equidade no âmbito acadêmico brasileiro. Destaca-se ainda a importância da luta por equidade, representatividade e valorização cultural, utilizando o COPENE como um exemplo inspirador de como a união de vozes diversas pode contribuir para a transformação social, visando à construção de um futuro mais inclusivo e justo.
Palavras-chaves: COPENE; Vozes Negras; Resistência.
INTRODUÇÃO
Uma das estruturas que fortalecem o estado de insubmissão de intelectualidades negras, especialmente no que tange à produção de conhecimento científico e literário, é o sistema interseccional entre gênero, raça e classe. Nesse viés, compreende-se que essa combinação tríplice arca com uma visão de que pessoas pretas não produzem conhecimento científico. Nesse contexto, se considerarmos o perfil feminino no tocante à produção acadêmica, por exemplo, os prejuízos são ainda mais avassaladores. A chamada quarta onda do feminismo, definida por Heloisa Buarque de Hollanda (2018) como um movimento ativista que transcende as universidades e toma as ruas, promove discussões que abordam novas formas de feminismo: os feminismos da diferença, os feminismos na poesia, nas artes, na música, no teatro, no cinema, nas escolas, nas faculdades e em diversos espaços dominados por mulheres. A quarta onda feminista busca reavaliar os lugares de fala e analisar o sentido coletivo. Contudo, o “nós” feminista é uma construção fantasiosa que busca representar a coletividade, mas, ao mesmo tempo, exclui parte dessa clientela. (BUTLER, 2017, p. 245). Nessa perspectiva, essas vozes feministas, historicamente silenciadas, ressoam em poesias que reivindicam espaços de expressão que, por muito tempo, foram negado às mulheres.
Veloso, Andrade e Condorelli (2020) pontuam que precisamos enxergar através das lentes da racialização o porquê de vozes negras serem silenciadas ao longo da história. Assim, entende-se que esse apagamento pode ser entendido, na verdade, como reflexo de uma sociedade que marca relações sociais de poder através do patriarcado, racismo e divisões de classes.
Nesse contexto, conforme Mendes (2023), a partir de movimentos epistemológicos que abraçam corpos negros, tornam-se possível outras formas hermenêuticas de interpretar o mundo e, assim, transformá-lo de modo a desconstruir opressões seculares, levando em consideração a união coletiva. Desse modo, o COPENE – Congresso de Pesquisadores (as) Negros (as) – é um exemplo de movimentos importantes que abraçam em grande escala o coletivo de produtores negros de saberes. Nesse contexto, a poesia comporta-se como um mecanismo de luta e resistência também uma vez que a arte pode ser vista com viés emancipatório.
A POESIA COMO CORPO-INSUBMISSÃO
Transformações na sociedade, como políticas, econômicas e culturais, influenciam a escolha de temas na literatura, como a configuração das cidades, movimentos de classes e contracultura. O corpo na literatura abrange discussões sobre liberdade, ética, estética, sexualidade, medicina e direito. Ao longo da história, o corpo adquiriu múltiplas dimensões, refletindo diferenciações em diversas áreas do conhecimento. O corpo é um espaço de memória individual e coletiva transmitida entre gerações. Ele se revela como um ponto de interseção das dominações de classe, gênero e raça, mas também como um espaço de resistência.
Nesse viés, Rosi Braidotti (1994) realizou diversos estudos abordando a relação entre o corpo e o feminino. Em sua perspectiva, elementos como a corporeidade, a sexualidade, a memória e a imaginação são fundamentais para a emergência da subjetividade política. O conhecimento feminista, segundo ela, é um processo interativo que revela aspectos da existência, especialmente as conexões com o poder que antes passavam despercebidas. Esse conhecimento nos leva a um terreno desconhecido, nos desestabiliza, nos afasta do familiar e nos lança para o estranho. A noção de ‘feminino’, abordada através da lente da diferença sexual, não é uma essência fixa, mas sim um projeto político que busca transcender a posição tradicional da Mulher como o Outro do Mesmo, buscando expressá-la como o outro múltiplo do Outro, conforme proposto pela teórica.
O corpo, por um lado, não se submete inteiramente às normas sociais, permitindo brechas para a subversão da identidade. Por outro lado, o corpo ancora o sujeito no mundo, possibilitando a percepção do espaço. Discursos e representações do corpo refletem transformações históricas, revelando relações entre subjetividade, objetividade, submissão e resistência. Imagens do corpo são uma lente para analisar a história, cultura e literatura, sendo a literatura um campo rico em representações do corpo, seja repetindo ou subvertendo estruturas. Dessa forma, a metáfora “o corpo escrito/a escrita do corpo” permeia análises da relação entre corpo e literatura o que nos permite inferir que, no século XXI, somos herdeiros culturais desse legado, reconhecendo o corpo como um ponto de conexão entre passado e futuro, profano e sagrado.
No cenário poético, por sua vez, é lícito pontuar que a poesia atua como um corpo carregado de simbologias e significados, especialmente no universo de vozes poéticas negras. Nesse viés, Paulina Chiziane (2013) sustenta que o mundo das mulheres, por exemplo, sempre foi caracterizado pela luta e resistência.
Ainda hoje a sociedade moderna considera os artistas como seus membros marginais. Ser mulher e ser artista torna-se um verdadeiro escândalo. Escândalo que tive que arriscar e suportar. Nesta sociedade a mulher só pode falar de amor e sexo com outras mulheres e também em segredo. Falar em voz alta é tabu, é imoral, é feio. (CHIZIANE, 2013, p. 12)
O depoimento proferido por Paulina Chiziane, escritora moçambicana, reforça a concepção de que as autoras desempenham um papel fundamental ao inserir o discurso feminino em textos literários produzidos por mulheres, uma abordagem estética e ideológica ainda frequentemente marginalizada em nações onde o patriarcado machista é preponderante, especialmente em decorrência da influência histórica da colonização portuguesa. Essa situação se agrava quando o cânone literário, em grande parte, é dominado por obras escritas por homens.
Por outra vertente, pesquisadores negros, ainda que inseridos no universo masculino, têm sua capacidade intelectual muitas vezes questionada uma vez que vivemos em sua sociedade ansiosa por embranquecer o conhecimento. Não muito raro, têm-se eventos cotidianos que visam à camuflagem da identidade étnica brasileira e que consolidam o pacto de branquitude exposto por Cida Bento (2019). A construção ideológica desse embranquecimento passa necessariamente pela classe dominante e se desdobra por todos os segmentos sociais.
Numa sociedade na qual os saberes socialmente válidos não abrem espaços para que o negro se veja a partir da perspectiva do próprio negro para assim se autodesignar capaz têm gerado situações nas quais se perpetuam exclusão e baixa autoestima. Nesse cenário, lugares onde as questões étnico-raciais são postas em evidência, especialmente ligadas à cultura e à pesquisa, validam o fortalecimento de uma identidade para o próprio exercício da cidadania.
COPENE – ESPAÇO DE LUTA E (RE)EXISTÊNCIA
Quando se reconhece a necessidade de inserção de negros, por exemplo, no cenário literário e de pesquisa, faz-se relevante pontuar sobre a criação de espaços nos quais essas vozes possam ecoar. Nessa perspectiva, para compreendermos melhor a importância de um evento que movimenta toda uma sociedade, especialmente quando evidencia pesquisadores negros, precisamos contextualizar a trajetória do COPENE
Existem já, felizmente, movimentações densas no cenário da produção acadêmica de pesquisadores negros. Nesse viés, a ABPN – Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as) – é a idealizadora organizacional do Congresso Brasileiro de Pesquisadores(as) Negros(as) – COPENE; ela é uma associação sem fins lucrativos e apartidários cujo objetivo é defender a pesquisa acadêmico-científica da população afro-brasileira, com vistas à promoção da igualdade racial e ao combate ao racismo.
A primeira edição do COPENE institucionalizou-se em meados do ano de 2007, na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Nordeste, tendo em vista que a ABPN sistematiza o evento em sedes divididas regionalmente; a saber, as regiões brasileiras Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul são aclamadas pelas edições bienais do Congresso de Pesquisadores(as) Negros(as). Destarte, no I COPENE 2007, intitulada por “Presença Negra no Nordeste para além dos Tambores: saberes culturais e produção de conhecimento”, acarretou um desígnio de propiciar a produção e a socialização do conhecimento de perspectiva interdisciplinar acerca dos saberes tradicionais e da produção de conhecimento.
Por conseguinte, entende-se o surgimento do COPENE como um marco significativo cujo intuito se dá pela busca da representatividade e da equidade, ao promover um espaço de discussão e reflexão a partir de pesquisas, conhecimentos e questões sociais relevantes para a comunidade negra. O COPENE, ao se consolidar como um catalisador de descobertas e discussões, fomenta a interdisciplinaridade ao incentivar colaborações e abordagens integradas para os desafios contemporâneos que afetam diretamente grupos historicamente marginalizados, tornando-se um instrumento de ampliação dessas vozes.
Outrossim, precisamos pontuar que os espaços dos COPENE’s estendem-se para além dos cientistas sociais, matemáticos, políticos, afro-brasileiros; são ainda espaços que acolhem intelectualidades indígenas como também simpatizantes com a luta antirracista, uma vez que a ação transformadora que almeja a equidade necessita das pluralidades sociais.
Em 2023, o COPENE – Nordeste aconteceu em Maceió-Alagoas, entre os dias 10 e 15 de novembro, com o tema “Duas Décadas das Ações Afirmativas: o legado de Palmares e o futuro das Políticas Públicas”. A escolha de Alagoas como sede do IV COPENE NORDESTE se deu na assembleia final do III COPENE NORDESTE e, além da UFAL, a Comissão Organizadora Local do evento também será composta pela Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL) e pelo Instituto Federal de Alagoas (IFAL).
Ao participarmos do evento, constatamos que as edições bienais dos COPENE’s são estruturadas a partir de conferências, simpósios temáticos, mesas-redondas, comunicação de pesquisas, painéis, feiras, lançamento de livros e intensa agenda cultural. Com a proposta também de apresentar à comunidade em geral as riquezas das culturas negras, além dos congressos nacionais, a ABPN também realiza os encontros regionais.
Vivenciar a quarta edição do COPENE Nordeste foi uma experiência transformadora e gratificante haja vista que foram muitos os momentos enriquecedores, com o compartilhamento de escrevivências de profundo impacto por estudantes, profissionais e pesquisadores de diferentes áreas. Tais perspectivas contribuíram para o fortalecimento de nosso compromisso com a pesquisa e, alicerçado nesse propósito, com a inclusão de fato.
Além disso, foi possível desfrutarmos de um momento de lazer em um dos principais pontos do evento, a Terra de Zumbi dos Palmares. A Serra da Barriga, em União dos Palmares, local símbolo de luta e resistência negra, culminou na formação dos primeiros quilombos liderados por Zumbi dos Palmares e sua esposa, Dandara; com certeza, essa exeperiência ficará eternizada em nossas memórias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho destaca a interseccionalidade como um fator determinante na perpetuação do estado de insubmissão enfrentado por intelectualidades negras na contemporaneidade. Ao explorar a quarta onda do feminismo, por exemplo, evidencia-se a busca por novas formas de expressão e representação, que, embora busquem o coletivo feminista, enfrentam desafios na inclusão plena de vozes historicamente marginalizadas uma vez que o espaço literário está ainda ,dominado por estereótipos e valores patriarcais.
A reflexão sobre o Congresso de Pesquisadores Negros (COPENE) ressalta a importância desse evento como um espaço de luta, resistência e construção coletiva de saberes. O COPENE emerge como um catalisador significativo na busca pela representatividade e equidade, proporcionando um ambiente propício para a troca de experiências, discussões interdisciplinares e a valorização de saberes afro-brasileiros.
Ao participar do COPENE Nordeste, os autores destacam a experiência transformadora vivida no evento, enriquecida pelo compartilhamento de escrevivências e pelo fortalecimento do compromisso com a pesquisa inclusiva. A visita à Terra de Zumbi dos Palmares simbolizou, nesse contexto, a conexão entre passado e presente, reforçando a importância de preservar e celebrar as raízes culturais como elementos fundamentais na construção de identidades e na resistência contra opressões seculares.
Dessa forma, concluímos que a luta por equidade e representatividade, aliada à valorização de expressões culturais e à construção colaborativa de conhecimento, é fundamental para desafiar estruturas de poder patriarcais, racistas e classistas. O COPENE, como espaço de resistência, se torna um exemplo inspirador de como a união de vozes diversas pode contribuir para a transformação social, impulsionando a construção de um futuro mais inclusivo e justo.
Referências
BENTO, Cida. O pacto da branquitude. 1ºedição. São Paulo: Companhia das Letras, 2022
BRAIDOTTI, Rosi. “Between the no longer and the not yet: nomadic variations on the body”. No site No site http://women.it/cyberarchive/files/braidotti.htm , consultado em: 15 ago. 2023.
BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 13. ed. Judith Butler; tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017
CHIZIANE, Paulina. Eu, mulher… Por uma nova visão do mundo. Belo Horizonte: Nandyala, 2013.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
MENDES, Talita Rosetti Souza; FREITAS, Karine Aragão dos Santos. ENTRE OLHOS D’ÁGUA E INSUBMISSAS LÁGRIMAS: MÚLTIPLAS REPRESENTAÇÕES FEMININAS NA LITERATURA NEGRO-
BRASILEIRA DE CONCEIÇÃO EVARISTO. Revista de Letras Norte@mentos, [S. l.], v. 16, n. 44, 2023. DOI: 10.30681/rln.v16i44.11123. Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.php/norteamentos/article/view/11123. Acesso em: 30 set. 2023.
VELOSO, M. DO S. F.; ANDRADE, A. O. DE; CONDORELLI, A. Insubmissas mulheres negras: comunicação e interseccionalidade contra o epistemicídio. Esferas, n. 18, p. 6, 23 nov. 2020.
NATHÁLIA MARIA LOPES é professora Mestra do IFPI/Campus Piripiri; membro do NEABI/IFPI Campus Piripiri. E-mail: nathaliadias@ifpi.edu.br
FRANCISNILTO DOS SANTOS NASCIMENTO é graduando em Licenciatura em Matemática -IFPI/Campus Piripiri. E-mail: francisniltobruno@gmail.com
MICAELI RODRIGUES DE CARVALHO é estudante do Curso Técnico Integrado em Informática – IFPI/Campus Piripiri. E-mail: micaeli.email@gmail.com
NARA CHRISTINNA DA SILVA FONTINELE é graduanda em Letras-Português-Françês – UFPI/Campus Universitário Ministro Petrônio Portella. E-mail: narachristinna00@gmail.com
Ilustração | Marina Brito