PALAVRAS QUE CARREGAM HISTÓRIA

CLÊUMA DE CARVALHO MAGALHÃES

 

MUNDURUKU, Daniel. Crônicas de São Paulo: um olhar indígena. São Paulo: Callis, 2004, 63pp.

 

Daniel Munduruku é um escritor, educador e ativista indígena engajado no Movimento Indígena Brasileiro. Atualmente possui mais de 50 livros publicados por diversas editoras, em sua maioria literatura infanto-juvenil e paradidáticos. Recebeu diversos prêmios no Brasil e Exterior, entre eles o Prêmio Reconto da Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil em 2001 por “As Serpentes que Roubaram a Noite e outros mitos”; o Prêmio Jabuti pela obra “Coisas de Índio – Versão Infantil” no ano de 2004; o Prêmio Érico Vanucci Mendes, para obras voltadas à preservação da cultura brasileira (outorgado pelo CNPq no ano de 2003); o Prêmio Tolerância (outorgado pela UNESCO), pelo livro “Meu Avô Apolinário”, em 2002. O escritor nasceu em Belém do Pará em 1964. Na sua infância, viveu entre a aldeia dos munduruku e a cidade, até deixar definitivamente a aldeia para seguir com seus estudos. Em 1987 foi para o interior de São Paulo, onde se graduou em Filosofia, História e Psicologia. Fez Doutorado em Educação pela USP e pós-doutorado em Literatura pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. É Diretor presidente do Instituto UKA – Casa dos Saberes Ancestrais.

“Palavras que carregam história” (MUNDURUKU, 2004, p. 12)[1], é assim que Daniel Munduruku se refere aos nomes de alguns lugares da cidade de São Paulo, cuja origem vem do idioma indígena. Tatuapé, Anhangabaú, Itaquera, Ibirapuera, Jabaquara, Butantã, Pirituba, Tietê, Tucuruvi, Guarulhos são alguns desses nomes “que indicam origem, eventos, emoções de tempos antigos” (p. 12). É passeando por esses lugares que, em seu livro Crônicas de São Paulo: um olhar indígena, Daniel Munduruku nos convida a descobrir os significados, a história, a memória dos seus, ou melhor, dos nossos antepassados. Sim, porque por mais que alguns procurem negar, o povo brasileiro tem uma forte ancestralidade indígena. Além dos textos escritos, o livro apresenta também ilustrações que combinam o passado e o presente, o mundo natural e o mundo moderno, a cultura indígena e a não indígena.

O primeiro local visitado e também a primeira das dez crônicas é Tatuapé (“o caminho do tatu”). Neste local o índio se depara com o grande “tatu metálico” e passa a recordar o “tatu da floresta” e o “tempo de antigamente, quando o Tatuapé era um lugar de caça ao tatu” (p. 16). Dessa maneira simples e natural, Daniel Munduruku vai contando as histórias indígenas e criando um elo entre os dois mundos: o mundo cheio de magia em que não há preocupação com o tempo ou com o dinheiro e o mundo quadrado dos “brancos” que esqueceram os sonhos. Passando pelo Anhangabaú (“o rio da assombração”), o autor chega ao Ibirapuera (“lugar de árvores”), que ele compara a uma “autêntica aldeia indígena”, não só pela presença da natureza, mas por ser um lugar circular, “pois todos os seus cantos lembram nossa transitoriedade, nos ensinando que somos parte integrante do planeta e não seus donos” (p. 23), afirma o índio.

Daniel Munduruku segue para Jabaquara (“lugar de escravos fugidos”), onde reflete sobre a escravidão a que foram obrigados inicialmente os índios e depois os negros. Critica a falsa história transmitida por livros e professores que repetem a versão do colonizador. Gurapiranga (“lugar da garça vermelha”) é uma crônica em que o autor relembra a sua infância na tribo, seus momentos de alegria e principalmente de aprendizado com a floresta e com os mais velhos. Fala também da importância dos sonhos: “Nosso espírito estava solto e podia alcançar nossos ancestrais no mundo dos sonhos. Nessa hora muita coisa nos era ensinada por eles, que contavam histórias de muito antigamente” (p. 35). Resistiremos ao desejo de abordar cada uma das crônicas, pois o leitor deve seguir os passos de Daniel Munduruku e descobrir por si mesmo o encanto de cada lugar e de cada história.

A produção literária de Daniel Munduruku é uma forma de resistência, uma tentativa de manter vivos os costumes, as crenças, a história do povo indígena. Sua ação é de um mediador intelectual entre as culturas indígenas e não indígenas por meio de sua literatura. Em Crônicas de São Paulo, o autor revela uma visão indígena da grande cidade (como sugere o subtítulo do livro). Ao explicar o significado de nomes como Butantã, que quer dizer “terra firme”, o escritor imagina histórias e situações que teriam dado origem ao nome. Segundo ele, os índios batizam os lugares “pelo fato e não para homenagear alguém, como sempre ocorre com as pessoas da cidade” (p. 51). O mesmo se aplica aos nomes das pessoas “que são colocados para tornar presente a memória dos nossos antepassados” (p. 51). Refletindo sobre esse critério de nomeação, é interessante notar um certo tom crítico quando Daniel Munduruku fala sobre o Anhangabaú, “o rio da assombração”: “Que tipo de assombração teria sido essa? Teriam visto a Iara? Teriam se assustado com a presença inquietante do Curupira? […] Ou teriam apenas se deparado com a chegada de portugueses barbudos trajando roupas estranhas, calçando botas que feriam a Mãe Terra?” (p. 19). Nesse lugar de assombração, o espírito do índio sente certa angústia: “É tudo muito assustador visto daqui. Êta lugar pesado!” (p. 21).

Daniel Munduruku busca o resgate do universo mítico e mágico da cultura indígena brasileira, por isso a linguagem nos seus livros se aproxima das narrativas orais. Suas crônicas mais parecem uma conversa no terreiro da aldeia. Embora também marcada pela formação intelectual na cultura letrada, a cultura do “branco”, essa linguagem ainda mantém viva a magia das histórias contadas pelos mais velhos. Sua literatura, portanto, não se enquadra pacificamente dentro do conceito de aculturação, no qual uma cultura considerada mais fraca acaba subjugada pela mais forte, sendo absorvida ou assimilada pela outra, condenada a desaparecer com o passar do tempo. A obra de Daniel Munduruku revela que a cultura indígena brasileira não desapareceu, não foi anulada pela cultura não indígena. Assim, seria mais adequado falar em transculturação, pois sua produção literária é híbrida, produto do intercâmbio entre a cultura indígena e a do branco.

Com a proposta de construir um novo olhar não só sobre a cidade de São Paulo, mas também sobre o homem e sua própria história, Crônicas de São Paulo é um livro que precisa ser lido e pensado em sua dimensão social, ideológica e artística. Uma obra que cumpre o papel a que se propõe a literatura indígena: o de reavivamento e transmissão dos valores tradicionais.

 

[1] Todas as citações constantes neste texto são referentes à obra resenhada. Por essa razão, seguiremos indicando apenas a página onde estas se localizam.

CLÊUMA DE CARVALHO MAGALHÃES é professora do Instituto Federal do Piauí e pesquisadora do CNPq pela Universidade Federal de Sergipe. Possui graduação em Licenciatura Plena em Letras – Português e Doutorado em História da Literatura. E-mail: cleuma@ifpi.edu.br

Ilustração | Ísis Victória Braga Domingues